No dia 23 de Março de 1996,
vários presos do estabelecimento
prisional de Caxias recusaram-se
entrar nas suas celas.
Um acto de
protesto inserido numa campanha
iniciada dois anos antes em
várias prisões portuguesas, que
visava denunciar as condições de
encarceramento.
Treze anos depois,
iniciou-se no mês passado
julgamento do alegado motim de
Caxias.
Neste processo judicial,
13 arguidos são acusados dos crimes
de motim e dano qualificado.
Adérito Neto é um dos acusados
nesta entrevista fala em exclusivo
para O SAMBRASENSE sobre
as condições de vida na cadeia
sobre o processo agora em curso.
.
Em 1994, quando se iniciaram
as greves de fome nos estabelecimentos
prisionais de
Coimbra e de Caxias, como era
viver numa prisão?
O “viver” no Reduto Norte do
Forte de Caxias era terrível!...
ambiente era sufocante, conflituoso
tanto entre presos como entre
presos e guardas e altamente explosivo
a todo o momento.
Segundo o nº 1 do artº 18º do
Decreto-Lei nº 265/79 de 1 de
Agosto, “os reclusos são alojados
em quartos de internamento individuais”.
Ou seja, o direito a cela
individual era violado.
Os presos
eram forçados ao alojamento em
comum, com a agravante de estarem
submetidos à incubação
de um autêntico viveiro de germes,
devido a pessoas portadoras
de doenças infecto-contagiosas
(hepatite A, hepatite B, hepatite
C, sida e tuberculose multiresistente).
Em consequência disso,
como tínhamos a vida sujeita ao
contágio mortal, a violência desse
congestionamento criminoso originava
uma tensão explosiva.
A falta de privacidade originava
graves danos a nível da saúde física
e mental e por consequência
dessa incomensurável e degradante
situação não se conseguia
ler, pensar, reflectir e descansar,
constituindo um “trato” sobremaneira
degradante e humilhante,
para além de um atentado
vida de cada prisioneiro.
Alguns presos dormiam com
colchão no chão por falta de camas.
O direito à alimentação condigna
era violado. A alimentação era
pouco variada, pouco nutritiva,
insuficiente e a maioria das vezes
deteriorada.
O direito à higiene era violado.
As pragas de baratas circulavam
por cima do sangue saído das seringas
dos toxicodependentes e
por cima dos alimentos fornecidos
aos presos pelos seus familiares e
amigos.
O direito à devida assistência
clínica, médica e medicamentosa
era violado.
O deficiente serviço clínico,
atendimento, assistência médica
e medicamentosa, pautava-se
por um total desrespeito por elementares
preocupações médicas,
designadamente no que concerne
aos indivíduos de doenças infecto-
contagiosas.
O direito à identidade pessoal
era violado. Éramos tratados por
tu e por número, como se de gado
se tratasse.
O direito de os presos trabalhadores
receber um salário, conforme
estipula a reforma prisional,
era violado. O que recebiam nem
dava para um maço de cigarros.
As rusgas às celas e camaratas
sem a presença dos presos e com
total desrespeito pelos objectos
pessoais destes, era prática habitual.
(Violação do nº 7 do artº
116º do decreto-Lei nº 265/79 de
de Agosto).
As arbitrárias proibições de
visitas, inclusive de familiares,
restrições para a entrada das
mesmas, sem quaisquer fundamentos
face à lei da reforma prisional,
eram prática normalizada.
O funcionamento das entradas
das visitas era prepotente e vexatório,
com a agravante das sistemáticas
humilhações às pessoas
de sexo feminino.
Os espancamentos infligidos pelos
guardas prisionais, com a conivência
da chefia de guardas, sobre
os presos, era prática regular.
Os castigos arbitrários em cela
disciplinar era prática rotineira.
Eles violavam as suas próprias
regras. A ordem e o “normal”
funcionamento do Estabelecimento
Prisional de Caxias vinha
sendo violado pelos responsáveis
do mesmo, com a conivência do
governo, da Procuradoria-Geral
da República e da Direcção-Geral
dos Serviços Prisionais.
Enfim, os mais elementares
direitos consignados na Constituição
da República e na reforma
prisional eram sistematicamente
violados.
“Vivia-se” na incerteza,, em
ansiedade, em atroz agonia, no
desespero, em stress permanente, com os nervos
à flor da pele,
sempre em alerta, e com um pleno
sentimento de indignação.
.
Qual foi o modelo de organização
dos protestos que
ocorreram e como é que estes,
a partir de Caxias, se espalharam
aos estabelecimentos prisionais
do resto do país?
Em 1994, com base em experiências
anteriores, os presos em
Caxias auto-organizaram-se, sem
hierarquias entre eles, e na sua
declaração de princípios, diziam,
entre outros pontos, o seguinte:
“Se fores chamado ao Director,
diz que a nossa luta não tem a ver
com esta cadeia em particular,
tem a ver com as condições prisionais
gerais;
“Se houver transferências, não
parar a greve até ao hospital. Exigir
pesagem diária e médico na
cadeia para onde fores;
“Qualquer decisão para parar é
voluntária, mas quem parar deixa
de representar os princípios da
declaração de greve de fome;
“Nas negociações todos têm de
ser ouvidos. Se não nos deixarem
reunir, não paramos nem negociamos
até nos encontrarmos todos
no hospital;
“A imprensa poderá publicar
ou veicular noticias falsas sobre a
luta, não acreditar antes de confirmar
entre nós.
“Apelar aos familiares e amigos
para que se encontrem;
“Não há protagonistas nesta
luta, nenhum de nós que assuma
publicamente uma posição de
todos os grevistas previamente
acordada entre todos o fará segunda
vez;
“O mínimo de representantes
em encontros com a hierarquia
prisional ou política é de três, mas
não têm funções deliberativas.
Nas decisões têm de participar e
ser ouvidos todos;
“Todos estes pontos podem ser
alterados ou aumentados se for
esse o consenso a que se chegar,
em qualquer momento;
“Vamos à luta para ganhar!
Aguentar firme!”
Estes protestos espalharam-se
rapidamente às restantes prisões
do país através dos media (televisões,
rádio e jornais).
.
A nomeação de Marques Ferreira,
em Junho de 1994, para
o cargo de director geral dos
serviços prisionais significou
alguma mudança?
A nomeação do Marques Ferreira
significou o fim da censura
à correspondência, um travão
à prepotência dos funcionários
prisionais, um apelo aos presos
para que estes denunciassem
corrupção bem como as graves irregularidades;
e significou ainda,
para muitos presos, a expectativa
de que este novo director iria
“resolver” muitos dos problemas
pelos quais os presos lutavam, no
sentido de aliviar a crueldade que
o preso sofre.
Marques Ferreira põe “a boca
no trombone”. Entre outras escandalosas
denúncias, diz: “Quando
cá cheguei já tinha a noção de
que o sistema prisional não estava
bem. Actualmente posso dizer que
está péssimo” (Noticias Magazine,
2 de Abril de 1995); “Chegou
a um momento em que notámos
estar num atoleiro” (Conferência
de imprensa, 28 de Dezembro de
1995). Ameaçado de morte pela
mafia dos interesses instalados
nos serviços prisionais, demite-se
em Janeiro de 1996, após 19 meses
nos serviços prisionais. Para
director-geral, máximo da hierarquia
dos serviços prisionais, dizer
publicamente o que disse, imaginemos
então como seria essa
tenebrosa realidade observada
por quem não está manipulado
domesticado pela mega-máquina
que insensibiliza corações!...
.
Quais os motivos que levaram
ao retomar dos protestos?
Nunca deixou de haver protestos.
Protestos individuais e em
pequenos grupos, sempre ocorreram.
A diferença é que estes
não eram em massa. O retomar
dos protestos em massa em finais
de 1995 e em princípios de 1996
deveu-se ao agravamento das
condições prisionais. 1996 foi um
dos anos mais altos não apenas no
número de presos mas também no
número de mortes de prisioneiros
no país. A 13 de Março de 1996,
existiam 12797 presos para uma
lotação de apenas 8599. A sobrelotação
atingiu, nas prisões centrais,
os 247% e, nas regionais,
503%. Portugal, em 1996, era
o país da Europa com mais alta
percentagem de reclusos por habitante.
Existiam 140 presos por
100 mil habitantes. E em 1997,
registou-se (números oficiais)
106 mortes por 10 mil prisioneiros.
O ambiente, profundamente
deprimente, era, ao mesmo tempo,
altamente explosivo, parecendo
prestes a rebentar a qualquer
momento. Essa era a sensação
que se tinha no dia a dia.
E para terminar este ponto,
respondo com um excerto da
publicação PRESOS EM LUTA
(www.presosemluta.tk):
“O acumular dos sucessivos
protestos que relatamos desde
1994 e 1995 vão eclodir em
1996 toda a revolta contida nas
prisões portuguesas. Os votos de
ano novo expunham velhas revelações
de um sistema prisional
que sem qualquer pudor atestava
o atentado dos direitos humanos
em Portugal. Desta feita, a gota
de água que fez transbordar esse
efervescente caldo prisional foi a
não consagração da restante população
prisional na amnistia ao
processo FUP/FP25, a par da primeira
e histórica negação de uma
amnistia presidencial desde o 25
de Abril de 1994.”
.
Como descreve os acontecimentos
de 23 de Março de
1996, data do alegado “motim
de Caxias”?
Nesse dia, os presos decidem
exigir o cumprimento do direito à
cela individual e pretendem contactar
com os jornalistas. Há uma
recusa geral a entrar nas celas. E
por exigirem o cumprimento dos
seus direitos, foram barbaramente
agredidos. Como se pode ler
na referida publicação (PRESOS
EM LUTA), “Dos 180 detidos
armazenados aos montes e indefesos
–entre o 3º esquerdo e o
3º direito-, quase todos sofreram
selváticos espancamentos durante
vários dias. Dessa prática de
terror resultaram múltiplas fracturas
e comoções cerebrais, tendo
ainda um preso ficado cego de
um olho devido a um tiro de bala
de borracha (...). Distribuiram-se
psicotrópicos fora da “refeição”
e o director interino da Direcção
Geral dos Serviços Prisionais, em
“diálogo” com os presos legitimamente
indignados demonstrou
o seu total desprezo por eles, seria
esta a faísca que iria acender
a mecha.”
Por agora, fico por aqui. Está-
me a ser bastante doloroso
o recordar aquela estruturada,
premeditada e incomensurável
violência institucionalizada.
Treze anos depois, como encara
este processo judicial?
A cumprirem com as regras do
Estado de Direito, este processo,
tanto a ser realizado um ou dois
anos a seguir a 23 de Março de
1996 como a 13 anos depois, é
totalmente improcedente. Pois,
todos – Governo e todas outras
instituições estatais - tinham perfeito
conhecimento do flagrante
e descarado atentado praticado
às pessoas que estavam sob a sua
tutela. Ë o Estado que deveria
ser julgado e não quem sofreu no
espírito, na pele e nos ossos essa
tremenda violência.
Penso que não realizaram o
julgamento logo a seguir a 1996
porque a memória da opinião pública
encontrava-se ainda bastante
fresca das repetidas denúncias
dos presos e das “bombásticas”
declarações de Marques Ferreira.
in O Sambrasense