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sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

ELES ESTÃO DOIDOS!, por António Barreto

La Jetée_ foto-romance de Chris Marker,1962
A MEIA DÚZIA DE LAVRADORES que comercializam directamente os seus produtose que sobreviveram aos centros comerciais ou às grandes superfícies vaiagora ser eliminada sumariamente. Os proprietários de restaurantes caseiros que sobram, e vivem no mesmo prédio em que trabalham,preparam-se, depois da chegada da 'fast food', para fechar portas e mudarde vida. Os cozinheiros que faziam a domicílio pratos e 'petiscos', a fim de os vender no café ao lado e que resistiram a toneladas de batatasfritas e de gordura reciclada, podem rezar as últimas orações. Todos osque cozinhavam em casa e forneciam diariamente, aos cafés e restaurantes do bairro, sopas, doces, compotas, rissóis e croquetes, podem sonhar comoutros negócios. Os artesãos que comercializam produtos confeccionados àsua maneira vão ser liquidados.A SOLUÇÃO FINAL vem aí. Com a lei, as políticas, as polícias, os inspectores, os fiscais, a imprensa e a televisão. Ninguém, deste velhomundo, sobrará. Quem não quer funcionar como uma empresa, quem não usa oscomputadores tão generosamente distribuídos pelo país, quem não aceita as receitas harmonizadas, quem recusa fornecer-se de produtos ematérias-primas industriais e quem não quer ser igual a toda a gente estácondenado. Estes exércitos de liquidação são poderosíssimos: têmEstado-maior em Bruxelas e regulam-se pelas directivas europeias elaboradas pelos mais qualificados cientistas do mundo; organizam-se nogoverno nacional, sob tutela carismática do Ministro da Economia e daInovação, Manuel Pinho; e agem através do pessoal da ASAE, a organização mais falada e odiada do país, mas certamente a mais amada pelasmultinacionais da gordura, pelo cartel da ração e pelos impérios doaçúcar.EM FRENTE À FACULDADE onde dou aulas, há dois ou três cafés onde osestudantes, nos intervalos, bebem uns copos, conversam, namoram e jogam àscartas ou ao dominó. Acabou! É proibido jogar!Nas esplanadas, a partir de Janeiro, é proibido beber café em chávenas delouça, ou vinho, águas, refrigerantes e cerveja em copos de vidro. Tem de ser em copos de plástico.Vender, nas praias ou nas romarias, bolas de Berlim ou pastéis de nata quenão sejam industriais e embalados? Proibido.Nas feiras e nos mercados, tanto em Lisboa e Porto, como em Vinhais ou Estremoz, os exércitos dos zeladores da nossa saúde e da nossa virtudefazem razias semanais e levam tudo quanto é artesanal: azeitonas, queijos,compotas, pão e enchidos.Na província, um restaurante artesanal é gerido por uma família que tem, ao lado, a sua horta, donde retira produtos como alfaces, feijão verde,coentros, galinhas e ovos? Acabou. É proibido.Embrulhar castanhas assadas em papel de jornal? Proibido.Trazer da terra, na estação, cerejas e morangos? Proibido. Usar, na mesa do restaurante, um galheteiro para o azeite e o vinagre éproibido. Tem de ser garrafas especialmente preparadas.Vender, no seu restaurante, produtos da sua quinta, azeite e azeitonas,alfaces e tomate, ovos e queijos, acabou. Está proibido. Comprar um bolo-rei com fava e brinde porque os miúdos acham graça?Acabou. É proibido.Ir a casa buscar duas folhas de alface, um prato de sopa e umas fatias defiambre para servir uma refeição ligeira a um cliente apressado? Proibido. Vender bolos, empadas, rissóis, merendas e croquetes caseiros é proibido.Só industriais.É proibido ter pão congelado para uma emergência: só em arcas especiais ecom fornos de descongelação especiais, aliás caríssimos. Servir areias, biscoitos, queijinhos de amêndoa e brigadeiros feitos pelavizinha, uma excelente cozinheira que faz isto há trinta anos? Proibido.AS REGRAS, cujo não cumprimento leva a multas pesadas e ao encerramento do estabelecimento, são tantas que centenas de páginas não chegam para asdescrever.Nas prateleiras, diante das garrafas de Coca-Cola e de vinho tinto tem dehaver etiquetas a dizer Coca-Cola e vinho tinto.Na cozinha, tem de haver uma faca de cor diferente para cada género.Não pode haver cruzamento de circuitos e de géneros: não se pode cortarcebola na mesma mesa em que se fazem tostas mistas.No frigorífico, tem de haver sempre uma caixa com uma etiqueta 'produto não válido', mesmo que esteja vazia.Cada vez que se corta uma fatia de fiambre ou de queijo para umasanduíche, tem de se colar uma etiqueta e inscrever a data e a hora dessaoperação.Não se pode guardar pão para, ao fim de vários dias, fazer torradas ou açorda.Aproveitar outras sobras para confeccionar rissóis ou croquetes? Proibido.Flores naturais nas mesas ou no balcão? Proibido. Têm de ser de plástico,papel ou tecido.Torneiras de abrir e fechar à mão, como sempre se fizeram? Proibido. As torneiras nas cozinhas devem ser de abrir ao pé, ao cotovelo ou com célulafotoeléctrica.As temperaturas do ambiente, no café, têm de ser medidas duas vezes pordia e devidamente registadas.As temperaturas dos frigoríficos e das arcas têm de ser medidas três vezes por dia, registadas em folhas especiais e assinadas pelo funcionáriocertificado.Usar colheres de pau para cozinhar, tratar da sopa ou dos fritos?Proibido. Tem de ser de plástico ou de aço.Cortar tomate, couve, batata e outros legumes? Sim, pode ser. Desde que seja com facas de cores diferentes, em locais apropriados das mesas e dasbancas, tendo o cuidado de fazer sempre uma etiqueta com a data e a horado corte.O dono do restaurante vai de vez em quando abastecer-se aos mercados e leva o seu próprio carro para transportar uns queijos, uns pacotes deleite e uns ovos? Proibido. Tem de ser em carros refrigerados.TUDO ISTO, como é evidente, para nosso bem. Para proteger a nossa saúde.Para modernizar a economia. Para apostar no futuro. Para estarmos na linha da frente. E não tenhamos dúvidas: um dia destes, as brigadas vêm, comestas regras, fiscalizar e ordenar as nossas casas. Para nosso bem, poisclaro.

«Retrato da Semana» - «Público» de 25 de Novembro de 2007

de GrupoManifesto FLUL_ Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa